Clementina de Jesus é conhecida e aclamada como a inconfundível e autêntica voz da raiz do samba.
Mas, para defini-la melhor, é preciso ir para além da raiz do samba:
A memória e a cultura musical afro-brasileira tem entre suas originárias manifestações o partido alto, o jongo, os cantos de trabalho, de roda. Esta memória que desde sempre esteve arraigada na nossa cultura, mostra sua força subitamente na voz e nos cantos que Clementina entoava. Estes cantos, foram ensinados a Clementina por sua mãe filha de escravos.
Deste modo, Clementina representava o elo entre a formação da identidade cultural brasileira e a África Mãe: Era como se sua voz remetesse a algo que arrepiasse, arrebatasse e levasse àqueles que tinham a honra de ouvi-la, a experimentar aquela sensação inexplicável que temos quando ficamos diante de algo que realmente nos identifica, nos representa.
Tudo isso vinha do peso ancestral de sua voz que demonstrava claramente a nossa própria raiz africana e, por isso, era tão arrebatadora. Talvez esta fosse a razão de todos com quem se envolvia, ter a compulsão de chamá-la Mãe!
Por outro lado, ao mesmo tempo em que tinha aquela ternura de avó que todo mundo quer abraçar, Clementina impunha o respeito de uma verdadeira Rainha africana: “Rainha Ginga“, “Quelé“, eram duas maneiras de chamá-la já que tinha naturalmente a imponência do título de realeza, e a simplicidade que inspirava ternura e profundo respeito. Assim, era capaz de interromper a entrevista na TV para conversar sobre o café com a moça que o servia e, com um brilho especial nos seus olhos que cativava desde os mais humildes ao imperador Haile Selassiê.
Fato é que, Clementina de Jesus, aquela senhora encantadora que tinha o respeito de uma rainha e a ternura de uma mãe, nasceu na periferia de Valença, no sul do Rio de Janeiro, passou mais da metade da sua vida no anonimato, vivendo entre o Bairro de Osvaldo Cruz, berço da Portela e o Morro da Mangueira, de onde vieram grandes nomes como Cartola. Trabalhou como doméstica por mais de 20 anos e, devota da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, participava de festas da igreja da Penha e de São Jorge , cantando canções de romaria até ser “descoberta”, aos 62 anos de idade, pelo compositor Hermínio Bello de Carvalho, que a levou para participar do show “Rosas de Ouro”. O Show, virou disco pelo Odeon, trazendo entre outros ritmos afro-brasileiros, o jongo “Benguelê”.
Clementina gravou ainda partido alto, corimás, jongos, cantos de trabalho e mostrou que a mais autêntica identidade cultural do Brasil, o samba, tinha inegavelmente como matriz, as raízes africanas.
Ganhou respeito em vários países, levou a nossa cultura pelo mundo com seu timbre de voz inconfundível através da inesquecível canção “Marinheiro só“.
Em 1968, com a produção de Hermínio Bello de Carvalho, registrou o histórico LP “Gente da Antiga” ao lado de Pixinguinha e João da Baiana. Gravou cinco discos solo (dois com o título “Clementina de Jesus”, “Clementina, Cadê Você?” e “Marinheiro Só”) além de fazer diversas participações, como nos discos “Rosa de Ouro”, “Cantos de Escravos”, Clementina e convidados e “Milagre dos Peixes”, de Milton Nascimento, interpretando “Escravos de Jó”. Foi cantada por Clara Nunes com o “P.C.J, Partido Clementina de Jesus”, em 1977, de autoria do compositor da Portela Candeia e em 1983 recebeu uma grande homenagem num espetáculo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro com participação de João Nogueira Elizeth Cardoso e Paulinho da Viola, além de outros nomes do samba.
Clementina foi entoar seus cantos no céu, em julho de 1987 e de lá certamente dirige a todos nós o seu olhar terno, na certeza de que todos aqueles que apreciam a autêntica cultura brasileira, a reverenciam com o respeito que é devido à Rainha Ginga.